UM OLHAR OUTRO
17 de Setembro de 2023
Com
o tema Modernidade Protestante, entramos no último capítulo de Falso Testimonio.
StarK,
tendo sido educado nas glórias da Reforma e recebido constantes acusações da
«maldade católica», situa deste modo a questão: «fui instruído profunda e
detalhadamente no evangelho de Max Weber (1864-1920): que o protestantismo deu
à luz uma ética do trabalho única que assentou as bases do capitalismo, e que, portanto,
a modernidade é o resultado directo da Reforma».
Passando
à análise dos fundamentos de tal afirmação, que contesta, Stark refere: «Diz-se
que o vínculo básico entre a Reforma e a liberdade religiosa reside na
conclusão teológica de Lutero, segundo a qual cada pessoa é responsável pela
sua própria salvação, e que, portanto, cada pessoa deve ser livre para crer de
acordo com as suas próprias convicções e render culto a Deus conforme o seu próprio
desejo. Mas Lutero não criou nada de tudo isso. (...) A Reforma simplesmente
substituiu o monopólio da Igreja Católica pelo monopólio das igrejas
protestantes».
Argumentando
e rebatendo as conclusões de Weber, Stark, citando vários historiadores de
renome, afirma: «De facto, o capitalismo foi uma invenção bem católica:
apareceu pela primeira vez nas grandes propriedades monásticas católicas, o que
nos obriga a remontar ao século IX».
Mas,
afinal o que é o capitalismo? Difícil de definir, reconhece. É que, na origem,
o termo não era um conceito económico mas «uma designação perjorativa que os
autores de esquerda do séc. XIX utilizaram pela primeira vez para condenar a
riqueza e os privilégios». Depois de abordar a evolução do termo capitalismo,
Stark acrescenta: «Pouco depois da conversão de Constantino (312 d. C.) a
Igreja deixou de estar dominada por ascetas, e as atitudes a respeito do
comércio começaram a suavizar-se, o que levou a que já Santo Agostinho
ensinasse que a maldade não era inerente ao comércio, mas que, como em qualquer
outra ocupação, o indivíduo era capaz de viver justamente».
Durante
toda a Idade Média, a Igreja foi a principal força na evolução da economia. Com
prejuízos até para a sua missão prioritária: «Os mosteiros medievais acabaram
por assemelhar-se a empresas ‘modernas’: bem administradas e dispostas a
adoptar rapidamente os últimos avanços tecnológicos». E acrescenta, em jeito de
síntese: «A crença nas virtudes do trabalho e da vida simples esteve muito viva
nas origens do capitalismo, mas este produziu-se séculos antes de Martinho
Lutero nascer. Apesar do facto de que muitos monges e monjas - talvez a maioria
- procediam da nobreza e das famílias mais ricas, sabemos que eles honraram o trabalho
não só em termos teológicos, mas também trabalhando de facto com as próprias
mãos. Nas palavras de Randall Collins, eles ‘seguiram a ética protestante sem o
protestantismo’. A virtude do trabalho foi posta em relevo no século VI por S.
Bento, que escreveu na sua famosa Regra: ‘a ociosidade é inimiga da alma’. Por
isso os irmãos devem ocupar-se em certos tempos no trabalho manual e a certas
horas na leitura espiritual (...). Porque só são verdadeiramente monges quando
vivem do trabalho das suas mãos, como os nossos pais e os apóstolos’. Ou como
escreveu no século XIV Walter Hilton, um agostinho inglês: ‘A disciplina da
vida física capacita-nos para o esforço espiritual’. Este compromisso com o trabalho
manual é justamente a nota que distingue o ascetismo cristão daquele que
encontramos nas outras grandes culturas religiosas, onde a piedade está
associada à rejeição do mundo e das suas actividades. Ao contrário, por
exemplo, dos homens santos orientais que se especializam na meditação, mas
vivem da caridade, os monges cristãos medievais viveram do seu próprio
trabalho, explorando eles mesmos propriedades altamente produtivas. Isto não só
evitou que ‘o zelo ascético se petrificasse ao fugir do mundo’ mas também
manteve viva uma sadia preocupação pelos assuntos económicos. Ainda que a tese
da ‘ética protestante’ seja errónea, é legítimo vincular o capitalismo a uma
‘ética cristã’.
Continuaremos e terminaremos no próximo número.
P.
Abílio Cardoso
Créditos: Pixabay
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