UM OLHAR OUTRO

12 de Julho de 2020

Comungo das dores e anseios da Humanidade. Sofro com aqueles que, à minha volta, se exprimem às vezes em termos de revolta perante a dor ou a morte. E não me sinto diminuído quando as pessoas esperam do padre uma resposta diferente, que seja solução ao menos parcial, e me olham de algum modo frustradas quando lhes digo que também eu faço as mesmas perguntas. Mais ainda, insisto até que exprimam a sua revolta sem limitações de linguagem ou ultrapassando os códigos sociais e morais.

É missão comungar do mistério, estar ao lado em silêncio e assumir a não solução. Como é missão também ajudar a situar-se dentro do mistério, mesmo sem mostrar que se procura solução.

Parece-me ser de destacar que, ao contrário do que seria expectável, a cultura de hoje está muito menos preparada para lidar com o sofrimento ou a morte. Não estamos de facto preparados para aquilo que se torna inevitável contemplar num acidente grave, numa cama de hospital, numa sala de operações, ou numa morgue. Afinal, sempre que o tema se nos impõe procuramos fugir-lhe logo que possível, ouvindo-se às vezes logo de início uma voz a pôr termo ao assunto. Não sabemos estar lá (no sofrimento ou na morte), nem no dos outros, nem no nosso.

O rol das desgraças, dos crimes passionais, dos suicídios e homicídios, da violência doméstica, da agressividade mórbida e gratuita não é excepção. Tornou-se regra nos media diários, o que gera, inevitavelmente, uma insensibilidade colectiva, tornando-se «normal» no quotidiano. O mediatismo de alguns casos alimenta especulações, enche páginas de jornais e contribui para um certo voyeurismo colectivo, que, desdramatizando, também vai desumanizando.

Nestes cenários, não há fronteiras geográficas, quais «cercas sanitárias», que só acontecem aos outros, longe de nós. O número de suicídios, de violência doméstica e também de acidentes mortais aumenta nas aldeias como nas cidades. Fala-se pouco deles, até porque os funerais, demasiado «rápidos» parecem encerrar mais o assunto do que o cadáver. Não se fala, nem convém falar. E na missa de sétimo dia, quando existe, já pouco resta de «presença» na partilha de um luto, que se tornou mais formal do que expressão de sentimentos. Quantas vezes tenho eu afirmado que «a morte em Barcelos é fria»! E se a morte é fria, será que a vida é «quente», isto é sábia de valores e plena de relações familiares e sociais?

Momento por natureza delicado, o funeral é bem revelador da sociedade que temos e dos valores que a habitam. Num dos funerais a que presidi, já lá vão uns anos, alguém da família se me apresentou para se justificar dizendo «não estranhe se nós não respondermos, pois nós não gastamos disso». Claro que o respeito pelo defunto me levou a dar dignidade ao acto, ao menos ritual, na esperança de que nem todos seriam da família, dita descrente. Mas fez-me pensar no modo como acolher uma família em luto e com ela preparar o funeral, que deveria ser religioso se a família «gasta disso» ou civil, dado que o simples facto de sermos humanos exige um ritual de adeus, diferente do dos animais. Que dizer destas mortes celebradas sem rituais, sem cerimónias, sem público até (ai algumas «últimas vontades» que só revelam o egoísmo com que se viveu!), quando já se celebram rituais de adeus aos bichinhos de estimação! Outrora abundavam os estandartes das confrarias, associações religiosas que, representadas no funeral, testemunhavam publicamente as diversas pertenças do finado, todas elas marcadas por crenças e serviços à comunidade. Clubes e associações laicas, às vezes de militância política, impõem-se por vezes para cobrirem os caixões com os seus estandartes. Serão eles suficientemente consensuais para não darem azo a juízos de valor sobre a personalidade do falecido ou se tornarem ocasião de discórdia entre grupos ou famílias?

Mas, afinal, o que se celebra num funeral religioso? O termo da vida terrena de um baptizado, que é, na fé que supostamente o animou ao longo da vida, o início da vida eterna, uma vida em Deus e com Deus. E como dizer esta verdade numa assembleia que se diz descrente, estando sem estar e alheia à celebração?

No mínimo, desconfortável para quem tem de dizer uma palavra de esperança, de conforto e de abertura ao transcendente. Há, de facto, funerais que deveriam prescindir dos rituais religiosos.

O Prior - P. Abílio Cardoso

Publicado em 2020-07-12

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