UM OLHAR OUTRO
17 de Setembro de 2023
Vamos
então ao «Caso Galileu» para terminarmos o VII capítulo do livro Falso testimonio sobre
«heresias científicas».
Diz
Stark: «É verdade que Galileu foi citado ante a Inquisição romana e acusado de ensinar
a doutrina herética de que a Terra se move à volta do Sol ou de outra maneira. E
teve de se retratar. Mas nunca foi encarcerado ou torturado; a condenação que recebeu
foi uma confortável prisão domiciliária, durante a qual morreu aos setenta e oito
anos. É importante assinalar que o confronto de Galileu com a Igreja não ficou a
dever-se tanto às suas convicções científicas, mas antes à sua arrogante falta
de sinceridade. Vejamos então.
Muito
antes de ser eleito papa com o nome de Urbano VIII (o seu pontificado durou de
1623 a 1664, Maffeo Barberini, então cardeal, conheceu e fez amizade com
Galileu. Em 1623 este último publicou O
Ensaiador (Il Saggiatore), que dedicou
à família Barberini (o brasão desta família aparecia no pórtico com o título do
livro); conta-se que o novo papa ficou encantado com este livro pelos muitos
insultos de mau gosto contra vários sábios jesuítas. Em O Ensaiador atacava-se
sobretudo a Orazio Grassi, matemático jesuíta, que tinha publicado um estudo
que tratava (correctamente) os cometas como pequenos corpos celestes. Galileu
ridicularizou esta ideia, argumentando erroneamente que os cometas não passavam
de reflexos sobre os vapores que se elevavam da terra. De qualquer modo, O Ensaiador serviu
de impulso para o papa Urbano VIII escrever um adulador poema sobre a glória da
astronomia. Pergunta-se então: o que não deu certo?
É
importante situar o assunto Galileu no seu contexto histórico. Naquele momento,
a Reforma mantinha-se desafiante no norte da Europa, a Guerra dos Trinta Anos
continuava a causar destroços, e a Contra reforma católica estava em pleno
florescimento. Em parte, devido às acusações protestantes de que a Igreja
católica não interpretava fielmente a Bíblia, os limites da teologia admissível
estavam a tornar-se mais estreitos, o que conduziu à crescente intromissão da
Igreja nos debates eruditos e científicos.
Contudo,
Urbano VIII e outros altos funcionários da Igreja não estavam dispostos a tomar
medidas drásticas contra os cientistas, preferindo propor formas de evitar
conflitos entre a ciência e a teologia separando os âmbitos de competência de
ambos os tipos de conhecimento».
Foi
proposto a Galileu, como a outros cientistas, que considerassem as conclusões científicas
como hipotéticas, sem implicações teológicas directas. «E isto foi o que o papa
pediu a Galileu: reconhecer nas suas publicações que ‘nas ciências naturais não
era possível alcançar conclusões definitivas. Na sua omnipotência, Deus podia produzir
um fenómeno natural de todas as formas possíveis, pelo que seria vaidoso o filósofo
que pretendesse ter encontrado uma solução exclusiva. Parecia uma evasiva fácil.
E, dada a propensão de Galileu para reivindicar falsos méritos por descobertas que
outros faziam - como o telescópio - e a atribuir-se experimentos que
provavelmente nunca tinha realizado - como o dos objectos de pesos diferentes
lançados da torre inclinada de Pisa - pareceria que estar de acordo com o papa
não o obrigava a violentar os seus próprios valores éticos. Mas desafiar o papa
de uma maneira bem mais ofensiva correspondia totalmente ao ego de Galileu».
Numa
obra teatral Diálogo sobre os dois máximos sistemas
do mundo, escrita em 1632, com o aparente
objectivo de explicar o fenómeno das marés, a verdade é que eram os dois
sistemas, o de Ptolomeu (o Sol gira ao redor da terra) e o de Copérnico (a Terra
gira à volta do Sol) que estavam implicados. A trama do diálogo dos personagens
foi entendida como uma traição ao papa, com quem Galileu se tinha comprometido.
E as acusações de que foi alvo atribuiu-as ele a diferendos com os jesuitas e
outros professores universitários. «Apesar de tudo, o papa continuou a proteger
Galileu de um castigo sério. (...)Ironicamente muitas das suas ideias
apresentadas como verdadeira ciência não o eram; a sua teoria das marés, por
exemplo, era um disparate, como pôs de relevo Albert Einstein» em 1953.
«Galileu
não foi um sábio ingénuo que pereceu vítima de um punhado de indivíduos incultos
e intolerantes: estes mesmos ‘intolerantes’ deixaram tranquilos a dezenas de outros
sábios eminentes». O processo de Galileu, situado no contexto do esforço que alguns
líderes da Igreja faziam para eliminar a astrologia, em nada põe em causa que a
ciência esteve enraizada na teologia cristã. E, apesar de tudo, Galileu
continuou a ser profundamente religioso. «E, depois do julgamento a que foi
submetido, muitas vezes deu provas da sua fé pessoal à sua filha e a alguns
amigos».
Como
conclusão, lembramos que a ciência tem hoje a sua autonomia adquirida,
desenvolvendo-se por si, apesar de ter nascido da teologia e ter sido promovida
pela Igreja. E é bom que assim seja. Sem preconceitos ideológicos, mas em
respeito mútuo pelos campos de investigação, o da ciência e o da teologia,
ambos ao serviço de cidadãos livres no seu pensar e agir.
P.
Abílio Cardoso
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