UM OLHAR OUTRO

6 de Dezembro de 2020

Vamos então ao «Caso Galileu» para terminarmos o VII capítulo do livro Falso testimonio sobre «heresias científicas».

Diz Stark: «É verdade que Galileu foi citado ante a Inquisição romana e acusado de ensinar a doutrina herética de que a Terra se move à volta do Sol ou de outra maneira. E teve de se retratar. Mas nunca foi encarcerado ou torturado; a condenação que recebeu foi uma confortável prisão domiciliária, durante a qual morreu aos setenta e oito anos. É importante assinalar que o confronto de Galileu com a Igreja não ficou a dever-se tanto às suas convicções científicas, mas antes à sua arrogante falta de sinceridade. Vejamos então.

Muito antes de ser eleito papa com o nome de Urbano VIII (o seu pontificado durou de 1623 a 1664, Maffeo Barberini, então cardeal, conheceu e fez amizade com Galileu. Em 1623 este último publicou O Ensaiador (Il Saggiatore), que dedicou à família Barberini (o brasão desta família aparecia no pórtico com o título do livro); conta-se que o novo papa ficou encantado com este livro pelos muitos insultos de mau gosto contra vários sábios jesuítas. Em O Ensaiador atacava-se sobretudo a Orazio Grassi, matemático jesuíta, que tinha publicado um estudo que tratava (correctamente) os cometas como pequenos corpos celestes. Galileu ridicularizou esta ideia, argumentando erroneamente que os cometas não passavam de reflexos sobre os vapores que se elevavam da terra. De qualquer modo, O Ensaiador serviu de impulso para o papa Urbano VIII escrever um adulador poema sobre a glória da astronomia. Pergunta-se então: o que não deu certo?

É importante situar o assunto Galileu no seu contexto histórico. Naquele momento, a Reforma mantinha-se desafiante no norte da Europa, a Guerra dos Trinta Anos continuava a causar destroços, e a Contra reforma católica estava em pleno florescimento. Em parte, devido às acusações protestantes de que a Igreja católica não interpretava fielmente a Bíblia, os limites da teologia admissível estavam a tornar-se mais estreitos, o que conduziu à crescente intromissão da Igreja nos debates eruditos e científicos.

Contudo, Urbano VIII e outros altos funcionários da Igreja não estavam dispostos a tomar medidas drásticas contra os cientistas, preferindo propor formas de evitar conflitos entre a ciência e a teologia separando os âmbitos de competência de ambos os tipos de conhecimento».

Foi proposto a Galileu, como a outros cientistas, que considerassem as conclusões científicas como hipotéticas, sem implicações teológicas directas. «E isto foi o que o papa pediu a Galileu: reconhecer nas suas publicações que ‘nas ciências naturais não era possível alcançar conclusões definitivas. Na sua omnipotência, Deus podia produzir um fenómeno natural de todas as formas possíveis, pelo que seria vaidoso o filósofo que pretendesse ter encontrado uma solução exclusiva. Parecia uma evasiva fácil. E, dada a propensão de Galileu para reivindicar falsos méritos por descobertas que outros faziam - como o telescópio - e a atribuir-se experimentos que provavelmente nunca tinha realizado - como o dos objectos de pesos diferentes lançados da torre inclinada de Pisa - pareceria que estar de acordo com o papa não o obrigava a violentar os seus próprios valores éticos. Mas desafiar o papa de uma maneira bem mais ofensiva correspondia totalmente ao ego de Galileu».

Numa obra teatral Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, escrita em 1632, com o aparente objectivo de explicar o fenómeno das marés, a verdade é que eram os dois sistemas, o de Ptolomeu (o Sol gira ao redor da terra) e o de Copérnico (a Terra gira à volta do Sol) que estavam implicados. A trama do diálogo dos personagens foi entendida como uma traição ao papa, com quem Galileu se tinha comprometido. E as acusações de que foi alvo atribuiu-as ele a diferendos com os jesuitas e outros professores universitários. «Apesar de tudo, o papa continuou a proteger Galileu de um castigo sério. (...)Ironicamente muitas das suas ideias apresentadas como verdadeira ciência não o eram; a sua teoria das marés, por exemplo, era um disparate, como pôs de relevo Albert Einstein» em 1953.

«Galileu não foi um sábio ingénuo que pereceu vítima de um punhado de indivíduos incultos e intolerantes: estes mesmos ‘intolerantes’ deixaram tranquilos a dezenas de outros sábios eminentes». O processo de Galileu, situado no contexto do esforço que alguns líderes da Igreja faziam para eliminar a astrologia, em nada põe em causa que a ciência esteve enraizada na teologia cristã. E, apesar de tudo, Galileu continuou a ser profundamente religioso. «E, depois do julgamento a que foi submetido, muitas vezes deu provas da sua fé pessoal à sua filha e a alguns amigos».

Como conclusão, lembramos que a ciência tem hoje a sua autonomia adquirida, desenvolvendo-se por si, apesar de ter nascido da teologia e ter sido promovida pela Igreja. E é bom que assim seja. Sem preconceitos ideológicos, mas em respeito mútuo pelos campos de investigação, o da ciência e o da teologia, ambos ao serviço de cidadãos livres no seu pensar e agir.

P. Abílio Cardoso

Publicado em 2020-12-06

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