
«O Estado Novo [ainda] não saiu de Portugal»
Mário Pinto, in Observador - 30 jul 2022
Consolidar o aborto como direito fundamental poderia impedir objeção de consciência ou prazo limite para a sua realização.
O Presidente francês Emmanuel
Macron, no discurso de abertura da presidência francesa do Conselho da União
Europeia, anunciou o seu propósito de incluir entre os direitos reconhecidos
pela Carta Europeia dos Direitos Fundamentais o direito ao aborto. Considera
que esse alegado direito faz parte daqueles valores a que se tem chamado
“valores europeus”.
De imediato me veio à memória, a propósito, o que ouvi a
um bispo polaco, numa reunião de responsáveis católicos, no Vaticano, sobre o
futuro da União Europeia: como poderia crescer, entre os católicos polacos, o
apreço por este projeto quando se apresenta a legalização do aborto como parte
dos “valores europeus”?
A proposta do Presidente francês muitas e variadas
implicações acarretaria.
A questão do aborto começou por ser apresentada como uma
questão de simples despenalização (“todos somos contra o aborto, não queremos
incentivá-lo, só não concordamos com o julgamento e prisão de mulheres que
abortam”). As perguntas formuladas nos dois referendos que em Portugal
abordaram a questão apontavam nesse sentido; aludiam a “despenalização”, não a
“legalização” ou “liberalização”. Chegamos agora à pretensão de atribuir ao
aborto o estatuto de “direito humano fundamental”. Parece que também nesta área
se assiste a uma “rampa deslizante”, a um alargamento progressivo.
Na verdade, nunca esteve em jogo nesses referendos uma
simples “despenalização”. Despenalizar uma conduta (como sucedeu em Portugal,
em determinadas condições, com o consumo de droga) não significa necessariamente
legalizar tal conduta. O aborto passou a poder ser praticado em Portugal (como
em muitos países europeus) com a colaboração ativa do Estado (o que não
sucedeu, até agora com o consumo de droga, que continuou a ser sancionado como
contraordenação). Uma conduta pode deixar de ser penalizada (é o que sucede na
Polónia com a conduta da mulher grávida que aborta) sem ser legalizada (nesse
país é penalizada a conduta do médico que pratica o aborto quando a gravidez
não resulte de violação ou não esteja em causa algum perigo para a vida ou
saúde da mulher grávida).
O que em Portugal se verifica é uma legalização do
aborto (por isso, é praticado com a colaboração ativa do Estado), mais do que
uma despenalização. Nesse sentido, pode falar-se no reconhecimento de um
direito ao aborto. Mas esse direito não tem a natureza de “direito humano
fundamental”, como tal constitucionalmente tutelado. Por isso, não pode,
indubitavelmente, sobrepor-se ao direito à objeção de consciência, esse sim,
constitucionalmente tutelado como corolário da liberdade de consciência e de
religião (artigo 41.º, n.º 6, da Constituição portuguesa).
Se o direito ao aborto fosse inscrito na Carta Europeia
dos Direitos Fundamentais, daí decorreriam muito relevantes consequências.
Até agora, sempre se considerou que o estatuto jurídico
do aborto não entra no âmbito das atribuições da União Europeia e cabe no das
jurisdições nacionais. Isso mesmo é claramente declarado na Tratado de adesão
de Malta, país que continua a proibir em absoluto a prática do aborto. O
reconhecimento do aborto como direito incluído na Carta Europeia dos Direitos
Fundamentais negaria aos Estados membros a liberdade de estabeleceram não só
qualquer regime de proibição do aborto, como o de Malta, mas também qualquer
regime mais restritivo (que seguisse o chamado sistema de “indicações”), como o
da Polónia ou o que em Portugal vigorou até ao segundo referendo. Também
estaria vedada a proibição (como vem sendo proposto nalguns Estados
norte-americanos) do chamado “aborto seletivo”, isto é, do aborto determinado
pelo sexo do nascituro (na prática, quase sempre do sexo feminino).
Mais ainda: poderia considerar-se até que um sistema de
limitação de prazos (como o que entre nós vigora atualmente, tal como sucede na
generalidade dos países europeus) seria contrário a tal suposto “direito
fundamental”. É de salientar, a propósito, que em França foi recentemente
aprovado o alargamento do prazo da legalização/liberalização do aborto para as
catorze semanas (e uma proposta análoga foi apresentada em Portugal na
legislatura anterior), o que suscitou até a oposição de alguns partidários da
legalização, por o aborto nessa fase envolver uma prática mais danosa e cruel
para com o feto e acrescidos perigos para a mulher. Mas reconhecer o aborto como
direito humano fundamental significaria que qualquer limitação de prazos (até a
de catorze semanas) seria inaceitável.
Reconhecer o aborto como direito fundamental já não
permitirá afirmar inequivocamente que a ele se sobrepõe o direito à objeção de
consciência. Nessa linha, de limitação do direito à objeção de consciência, já
se pronunciou a tão contestada resolução do Parlamento Europeu (aprovada no ano
passado) “sobre a situação da saúde e direitos sexuais e reprodutivos na União
Europeia”, baseada no chamado relatório Matic. O direito à objeção de
consciência perante a prática do aborto, reconhecido em quase todos os países
da União Europeia (as exceções são as da Suécia e da Finlândia) seria, assim,
seriamente ameaçado.
Mas o que, sobretudo, deve ser evidenciado é a distorção
que introduziria na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia o
reconhecimento do aborto como direito humano fundamental. Uma Carta que
proclama, logo nos seus primeiros artigos, a inviolabilidade da dignidade do
ser humano (artigo 1.º) e o direito à vida (artigo 2.º, n.º 1), proclamaria
também o suposto direito de suprimir a vida de outro ser humano.
É injustificável tal contradição. Não está em causa a
autodeterminação corporal, pois toda a evidência científica revela que não está
em causa uma parte do corpo da mulher (longe vão os tempos da antiga Grécia, em
que se considerava o feto “parte das vísceras” da mulher, quando, além do mais,
não havia ecografias…). Não está em causa o livre desenvolvimento da
personalidade, pois este não se realiza contra os outros, mas com os outros.
O princípio da igualdade (consagrado nos artigos 20.º e 21.º da Carta) veda
qualquer discriminação na proteção do direito à vida: não é menos merecedor de
proteção o ser humano nas fases iniciais da sua existência, quando está ainda
privado de algumas das faculdades que virá a ter mais tarde; pelo contrário, a
sua maior vulnerabilidade nessas fases justificará uma maior proteção.
Uma não menos relevante consequência desta proposta de
Emmanuel Macron situa-se no plano político e cultural.
Num tempo em que, como talvez nunca antes se tenha
verificado na história do projeto de unidade europeia, cresce o chamado euroceticismo,
seria bom reforçar nos europeus a consciência de pertença à Europa como comunidade
de valores com sólidas raízes históricas e culturais. Uma Europa assente num
mero jogo de equilíbrio de interesses nunca poderá mobilizar o entusiasmo dos
europeus e o seu sentido de pertença a uma comunidade alargada. É nesse
contexto que permanecem atuais os apelos dos sucessivos Papas à valorização das
raízes cristãs da cultura europeia.
Ora, será difícil encontrar algo de mais contrário às
raízes cristãs da cultura europeia do que associar o aborto aos “valores
europeus”. E nada de mais “fraturante” e pouco consensual. Nada de mais
favorável ao crescimento do euroceticismo. É compreensível a pergunta do bispo
polaco a que me referi de início: como poderá crescer, entre muitas e variadas
pessoas, o apreço pelo projeto de unidade europeia quando se apresenta a
legalização do aborto como parte dos “valores europeus”?
Pedro Vaz Patto, in | 14 Mar 2022
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz.
Mário Pinto, in Observador - 30 jul 2022
Francisco Vêneto - publicado em 26/07/22, in Aleteia
Pedro Vaz Patto, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
Senhor ministro da Educação, se não quer ficar na história como o Inquisidor da propaganda de género, desbloqueie este nó górdio por si criado pois tem no Parlamento uma maioria do seu partido.
Isabel Ricardo Pereira, In 7Margens, 6.07.2022
Jorge Bacelar Gouveia