
Pelo sinal da santa cruz - Tanto faz não é resposta
Carmen Garcia
Onde estão os alegados
“restos mortais” de “centenas de crianças indígenas” que teriam sido
“sepultadas de modo anônimo em escolas católicas do Canadá”?
Quem quer saber é o
historiador Jacques Rouillard, professor emérito na Faculdade de História da
Universidade de Montreal. Em 11 de janeiro de 2022, ele publicou no portal
canadense DorchesterReview.ca um
texto retumbante no qual afirma que “nenhum corpo” de criança foi encontrado em
supostas “valas comuns”, “sepulturas clandestinas” ou em qualquer outra forma
de “sepultamento irregular” na Escola Residencial Indígena Kamloops, que seria
o epicentro de uma clamorosa narrativa anticatólica massivamente divulgada em
2021 como um escândalo de proporções planetárias.
O historiador fez
questão de desmascarar também o mais grave aspecto dessas bombásticas
manchetes: o de que, antes de serem sepultadas clandestinamente como indigentes
ou quase como “lixo”, as supostas “centenas de crianças” ainda teriam sido nada
menos que assassinadas sob responsabilidade da Igreja. Rouillard é contundente:
não foram achados nem sequer indícios de que alguma delas tenha sido morta
propositalmente.
De acordo com o
levantamento apresentado por Rouillard, 51 crianças morreram naquele internato
ao longo dos 49 anos transcorridos entre 1915 e 1964. No caso de 35 delas,
foram encontrados documentos que comprovam que a causa da morte, para a grande
maioria, foram doenças, e, em alguns casos, acidentes. Nenhuma das 51 crianças
falecidas foi assassinada.
Como a narrativa se espalhou
Ao longo de 2021, porém,
teve ampla divulgação na grande mídia canadense, com repercussão mundial, a
alegada descoberta de “sepulturas sem identificação” em “várias escolas
residenciais indígenas” do país. Transportadas imediatamente para as redes
sociais, estas alegações se transformaram em narrativas diversas, algumas das
quais afirmavam que “centenas de crianças” haviam “sido mortas” e “enterradas
secretamente” em “valas comuns” ou em “túmulos irregulares” dentro dos terrenos
de “escolas católicas” espalhadas “por todo o Canadá”.
De fato, diversas
escolas residenciais indígenas, embora pertencessem ao governo canadense,
tiveram sua gestão confiada a congregações religiosas, a maioria das quais eram
católicas. Por esta razão, a Igreja foi rapidamente acusada de “conivência ou
omissão” diante de “abusos e atos de violência, física e psicológica”,
infligidos às crianças nativas naquelas instituições, que haviam sido
implantadas pelo governo do país para, em tese, “integrar crianças nativas” à
sociedade canadense. O modelo governamental de suposta “integração”, porém, foi
acusado de forçar as crianças a se distanciarem bruscamente da sua cultura,
tradições e idiomas. Como não foi possível sustentar a narrativa de que
“centenas de crianças” tinham “sido mortas” em “escolas católicas”, a mídia
passou a enfatizar a indignação social causada não pelas mortes em si, mas pela
maneira como as crianças eram separadas da família tanto em vida quanto no
próprio sepultamento.
Até mesmo a China, cujo
governo comunista perpetra explicitamente abusos sistemáticos e fartamente
comprovados contra os direitos humanos dos próprios cidadãos, teve o desplante
de exigir no Tribunal de Direitos Humanos da ONU, em junho de 2021, uma
investigação sobre as “violações aos direitos humanos da população indígena do
Canadá”. A Anistia Internacional, organização que defende abertamente o
assassinato de bebês em gestação por meio do aborto livre, também exigiu que os
responsáveis pelos “restos mortais”
que “foram encontrados” em
Kamloops fossem processados.
Mas Jacques Rouillard
questiona sem panos quentes e indo direto ao ponto-chave: onde é que estão
estes alegados “restos mortais”?
Os supostos “restos mortais”
Segundo o extenso e
detalhado artigo do pesquisador, a suposta “descoberta” de mais de “200 corpos”
de crianças “mortas em escolas católicas” se baseou numa varredura de solo,
feita por radar, em busca de corpos de crianças que já se pressupunha que
tivessem sido anonimamente sepultadas em terreno pertencente à escola
residencial indígena de Kamloops. Um relatório preliminar não encontrou corpo
algum, mas sim rupturas do solo num pomar de macieiras das proximidades. Nenhum
“resto mortal” chegou a ser exumado, mas a líder indígena canadense Rosanne
Casimir afirmou que, “de acordo com o ‘conhecimento’ da comunidade”, aquelas
anomalias do solo “eram 215 crianças desaparecidas”, incluindo algumas de
apenas 3 anos de idade.
Rouillard prossegue a
exposição das suas investigações afirmando que, com base naquelas anomalias do
solo, a jovem antropóloga Sarah Beaulieu, que havia supervisionado as assim
descritas “varreduras”, teorizou que “provavelmente” havia 200 “possíveis
sepultamentos” no local. Somente uma escavação, no entanto, poderia apresentar
evidências – mas nenhuma escavação foi feita, nem na época, nem até hoje (!)
Desproporcionalidade das reações
As desvirtuações de
informação provocaram uma série de violentos ataques incendiários contra
igrejas católicas no país.
Mesmo com a
responsabilidade final pelas escolas e pela sua metodologia cabendo ao governo
canadense, os bispos católicos do Canadá fizeram publicamente um pedido de
desculpas pelas graves falhas cometidas por membros da Igreja na gestão
daqueles internatos – porque, afinal, embora não tenham matado ninguém nem
feito sepultamentos clandestinos, os gestores daquelas escolas certamente
erraram na forma de lidar com a separação das crianças de suas famílias e da
sua cultura e, principalmente, cometeram os mesmos abusos “disciplinares” que
costumavam ser cometidos na quase totalidade dos internatos da época, fossem
católicos ou não, fossem canadenses ou não.
Além das palavras, a
Igreja também assumiu compromissos concretos com as comunidades nativas
canadenses. Segundo o Vatican News, foram disponibilizados 30 milhões de
dólares, em todo o Canadá, durante cinco anos, para financiar programas a serem
definidos conjuntamente entre as lideranças indígenas e as dioceses, paróquias
e órgãos da Igreja no país. Dom Donald Bolen, arcebispo de Regina, disse que
seria “um longo caminho” e que era “importante percorrê-lo: precisamos
continuar com ações concretas por justiça e reconciliação”.
Representantes das
comunidades indígenas canadenses manifestaram à Santa Sé o desejo de um
encontro pessoal com o Papa, exigindo diretamente dele um pedido de desculpas.
O Papa Francisco se declarou disposto a aceitar. Em 27 de outubro de 2021, o
boletim diário da Santa Sé informou que “a Conferência Episcopal do Canadá
convidou o Santo Padre a fazer uma viagem apostólica ao Canadá, também no
contexto do longo processo pastoral de reconciliação com os povos indígenas.
Sua Santidade indicou a sua disponibilidade para visitar o país, numa data a
combinar”.
Esta é a viagem que está
sendo realizada pelo Papa Francisco nesta última semana de julho.
Enquanto isso, em
contraposição à postura de responsabilização e reconciliação que a Igreja
Católica apresentou desde o início das supostas “descobertas”, manifestantes radicais
anticatólicos reagiram com estúpida e criminosa violência no
Canadá, promovendo uma onda de ataques contra igrejas e, com isso,
dando uma mostra do que seria na realidade o seu hipocritamente alegado “desejo
de paz e reconciliação”.
Reviravolta
A reviravolta provocada
pela extensa matéria de Jacques Rouillard começou a repercutir, ainda em
janeiro, em outros veículos da América do Norte, que, finalmente, questionaram
as anteriores narrativas e suas intenções.
O “The Spectator World” se
perguntou: “Por que o governo canadense não esperou por provas antes de lançar
o país numa espiral de fúria e violência anticristã?”.
O “National Post” reforçou a
proposta do próprio Jacques Rouillard de exortar todos os canadenses a se
questionarem se, “no caminho para a reconciliação, não seria melhor procurar e
contar a verdade completa em vez de criar deliberadamente mitos
sensacionalistas”.
O “The Daily Wire“, em matéria
cujo título dizia que “a narrativa pode estar colapsando”, recordou que, na
época das alegadas “descobertas”, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau
declarou categoricamente que “restos mortais foram achados na antiga escola
residencial Kamloops” e que tal achado “partia seu coração”, porque, segundo
ele, “é uma dolorosa lembrança daquele capítulo escuro e vergonhoso da história
do nosso país”.
O fato verdadeiro é que
história real e completa ainda precisa – literalmente – ser escavada e exposta
ao mundo.
O pedido de perdão do Papa Francisco
Mas se as valas comuns e
seus apêndices narrativos eram uma grande farsa, por que o Papa Francisco está
agora pedindo desculpas no Canadá?
O Papa e a Igreja não
podem nem devem pedir desculpas por “valas comuns” ou por “centenas de crianças
assassinadas” porque nada disso é verdade. As desculpas que o Papa Francisco
está pedindo em nome da Igreja Católica dizem respeito, segundo as suas próprias
palavras, às “formas em que muitos cristãos, infelizmente, apoiaram a
mentalidade colonizadora das potências que oprimiram os povos indígenas”.
Francisco fez o
seu primeiro discurso durante
a “peregrinação penitencial” às terras canadenses nesta segunda-feira, 25, no
encontro com povos indígenas em Maskwacis, a cerca de 70 km da cidade de
Edmonton, na província de Alberta. No discurso, ele afirmou:
“Quero
iniciar daqui, deste lugar tristemente evocativo, o que pretendo fazer: uma
peregrinação penitencial. Chego às vossas terras nativas para vos expressar,
pessoalmente, o meu pesar, implorar de Deus perdão, cura e reconciliação,
manifestar-vos a minha proximidade, rezar convosco e por vós”.
O Papa recordou os
encontros previamente realizados em Roma, cerca de 4 meses atrás:
“Naquela
altura, foram-me entregues dois pares de mocassins, sinal das tribulações
sofridas pelas crianças indígenas, particularmente por aquelas que,
infelizmente, não mais regressaram das escolas residenciais para suas casas.
Pediram-me para restituir os mocassins quando chegasse ao Canadá; farei isto no
final destas palavras, inspiradas precisamente neste símbolo, que foi
reavivando em mim, nos meses passados, o pesar, a indignação e a vergonha. A
recordação daqueles meninos infunde consternação e incita a agir para que toda
criança seja tratada com amor, veneração e respeito. Mas estes mocassins nos falam
também de um caminho, de um percurso que desejamos fazer juntos. Caminhar
juntos, rezar juntos, trabalhar juntos, para que os sofrimentos do passado deem
lugar a um futuro de justiça, cura e reconciliação”.
Francisco evocou então a
longa trajetória dos povos indígenas e dos seus estilos de vida antes da
colonização. E acrescentou:
“Repenso
o drama sofrido por muitos de vós, pelas vossas famílias, pelas vossas
comunidades; repenso o que partilhastes comigo sobre as tribulações sofridas
nas escolas residenciais. Mas é justo fazer memória, porque o esquecimento leva
à indiferença e, como já foi dito, ‘o contrário do amor não é o ódio, é a
indiferença; o contrário da vida não é a morte, mas a indiferença face à vida
ou à morte’. Fazer memória das experiências devastadoras que aconteceram nas
escolas residenciais impressiona, indigna e entristece, mas é necessário”.
Mas a quais experiências
o Papa se refere?
No tocante
especificamente aos internatos governamentais confiados às comunidades católica
e protestante, é um fato documentado que neles se praticavam os abusos
tristemente comuns a muitos outros internatos semelhantes, como castigos
físicos, trabalho estudantil, rígidos períodos de separação e restrições de
comunicação entre as crianças e suas famílias, rigor disciplinar
desproporcional e desprezo pelas culturas indígenas, substituídas forçosamente
pela cultura europeia imposta pelo próprio governo do Canadá. O cenário
disciplinar não era muito diferente do que ocorria em escolas de elite de
Oxford ou Cambridge, e vem ao caso recordar que nos internatos do País de Gales
ou da Escócia tampouco se estudava em galês ou escocês, mas obrigatoriamente em
inglês.
O que tornou o caso dos
internatos canadenses particularmente candente foi a discriminação explícita
contra a cultura indígena, um fato que contribuiu para corroborar o contexto
mais amplo de discriminação característico do processo colonizador como um
todo. Mais grave ainda, porém, foi a separação forçada das crianças de suas
famílias e culturas.
O Papa Francisco
prosseguiu em seu discurso:
“É
necessário recordar como as políticas de assimilação e alforria, que incluíam o
sistema das escolas residenciais, foram devastadoras para as pessoas destas
terras. Quando os colonizadores europeus chegaram aqui pela primeira vez, eles
se depararam com a grande oportunidade de desenvolver um encontro fecundo entre
culturas, tradições e espiritualidades. Mas isso, em grande parte, não
aconteceu. E voltam-me à mente os vossos relatos: de como as políticas de
assimilação acabaram por marginalizar sistematicamente os povos indígenas; de
como as vossas línguas e culturas, também através do sistema das escolas
residenciais, foram denegridas e suprimidas; de como as crianças foram
submetidas a abusos físicos e verbais, psicológicos e espirituais; de como
foram levadas de suas casas quando eram pequeninas e de como isso afetou
indelevelmente a relação entre os pais e os filhos, os avós e os netos”.
Do perdão à reconciliação
Agradecendo às
comunidades indígenas canadenses por lhe terem “mostrado os fardos pesados que
carregais no vosso íntimo, por terdes partilhado comigo esta memória
sangrenta”, o Papa abordou a motivação da sua visita ao Canadá:
“Estou aqui porque o primeiro passo desta
peregrinação penitencial no meio de vós é o de vos renovar o pedido de perdão e
dizer com todo o coração que o deploro profundamente. Peço perdão pelas formas
em que muitos cristãos, infelizmente, apoiaram a mentalidade colonizadora das
potências que oprimiram os povos indígenas.
Sinto
pesar. Peço perdão, em particular pelas formas em que muitos membros da Igreja
e das comunidades religiosas cooperaram, inclusive através da indiferença,
naqueles projetos de destruição cultural e assimilação forçada dos governos de
então, que culminaram no sistema das escolas residenciais”.
O Papa ponderou:
“Embora
estivesse presente a caridade cristã e tivesse havido não poucos casos
exemplares de dedicação às crianças, as consequências globais das políticas
ligadas às escolas residenciais foram catastróficas. A fé cristã nos diz que se
tratou de um erro devastador, incompatível com o Evangelho de Jesus Cristo.
Perante este mal que indigna, a Igreja se ajoelha diante de Deus e implora o
perdão para os pecados dos seus filhos. Desejo reiterá-lo claramente e com vergonha:
peço humildemente perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra as
populações indígenas”.
Francisco enfatizou que
o pedido de perdão é “apenas o primeiro passo, o ponto de partida”. E
completou:
“Parte
importante deste processo é efetuar uma busca séria da verdade sobre o passado
e ajudar os sobreviventes das escolas residenciais a empreenderem percursos de
cura dos traumas sofridos”.
O Papa acrescentou,
falando das expectativas para o futuro:
“Continuarei a encorajar o compromisso de
todos os católicos em favor dos povos indígenas. Já o fiz noutras ocasiões e em
vários lugares, por meio de encontros, apelos e mesmo através duma Exortação
Apostólica. Sei que tudo isto requer tempo e paciência: trata-se de processos
que devem penetrar nos corações, e a minha presença aqui e o compromisso dos
bispos canadenses dão testemunho da vontade de avançar por este caminho.
Deixemos
que o silêncio nos ajude, a todos, a interiorizar o pesar. Silêncio. E oração:
frente ao mal, rezamos ao Senhor do bem; frente à morte, rezamos ao Deus da
vida. De um túmulo, termo último da esperança perante o qual se desvaneceram
todos os sonhos ficando apenas pranto, pesar e resignação, o Senhor Jesus
Cristo fez o lugar do renascimento, da ressurreição, de onde partiu uma história
de vida nova e reconciliação universal. Não bastam os nossos esforços para
curar e reconciliar, é precisa a sua graça: precisamos da sabedoria serena e
forte do Espírito, da ternura do Consolador. Seja Ele a preencher as
expetativas dos corações. Seja Ele a tomar-nos pela mão. Seja Ele a fazer-nos
caminhar juntos”.
Carmen Garcia
“As ruas e as praças de Lisboa não pertencem apenas aos sindicatos e não são propriedade da extrema-esquerda. Até os Católicos se podem manifestar, porque há separação entre a Igreja e o Estado.”
Cristina Robalo Cordeiro
Maria Susana Mexia
Alberto João Jardim
João Gonçalves, In Jornal de Notícias, 27/03/2023