«ACOLHER A VERDADE ESPIRITUAL QUE SÓ A FÉ CAPTA»

24 de Dezembro de 2023

“Atendendo a este fundo cultural e religioso, percebe-se que a palavra de Lucas e Mateus (1-2) não narra a conceção e o nascimento de Jesus como se estivesse a vê-los por fora. Narra o que a fé apostólica via por dentro desse acontecimento his­tórico: via o seu sentido teológico.

A palavra da fé não perguntava sobre um facto biológico extraordinário e humanamente impos­sível; nem dava a ideia de que as relações matrimoniais tornariam a geração de Jesus menos pura ou indigna d’Ele, numa espécie de exaltação da castidade da mãe. O que a fé via está para além do modo como possam ter aconteci­do a conceção e o nascimento de Jesus ao nível físico, biológico, gi­necológico.

(...) É narrativa religiosa, de pura fé, para suscitar mais fé. Não se po­dem colocar à narrativa perguntas de fisiologia, às quais ela não quer nem consegue dar resposta e para as quais não foi pensada. Não tem intenção de fazer biografia ou in­formar sobre história. Quer formar a fé sobre o ser daquele menino. Quer dizer que Deus se compro­meteu, pelo seu Espírito, no nas­cimento dele. Deter-se a pergun­tar «como pôde Maria conceber sendo virgem?» seria tão absurdo como colocar perguntas de ciên­cias naturais ou de historiografia a uma poesia. Perguntas desse género condicionam e estorvam a captação da mensagem humana e religiosa desses textos, que é a que constitui palavra de Deus.

Os leitores imediatos não faziam essas perguntas (nem o leitor sen­sato faz perguntas sobre como decorreu o concílio dos deuses nos primeiros versos do canto V da Odisseia de Homero). Acolhiam a verdade Espiritual para a qual aponta a virgindade enquanto realidade absoluta, a de uma pessoa livre de qualquer posse por parte dos humanos: entravam e ficavam na contemplação de Jesus como Filho de Deus e de Maria como sa­crário do Filho de Deus.

Portanto, a verdade da conceção de Jesus por ação do Espírito não pode nem quer ser demonstrada; quer ser acreditada. Só a fé capta tão sublime verdade.

A afirmação do nascimento de Je­sus da virgem Maria está narrativa­mente ao serviço da fé pascal para identificar Jesus como Filho de Deus: envolve-o e vê-o no mistério de Deus. Aliás, o ato de fé na con­ceção virginal de Jesus, expresso nas narrativas bíblicas, só se pode entender no contexto da fé na sua ressurreição pela ação do Espírito de Deus.

De facto, essas narrativas pressu­põem uma meditação retrospetiva sobre as origens de Jesus à luz da ressurreição, que revelou plena­mente o mistério do seu ser. Como a fé cristã dizia que foi o Espírito do Pai a fazê-lo ressuscitar para a vida Espiritual, também disse que foi o Espírito a fazê-lo nascer para a vida física: “O anjo do Senhor res­pondeu [a Maria]: o Espírito Santo virá sobre ti…; por isso, aquele que é concebido santo será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35).

O título Filho de Deus é posto na palavra do “anjo do Senhor” como a boa nova da ressurreição, signi­ficando que, no nascimento como na ressurreição é afinal Deus que pode revelar quem é o seu Ungido (Lc 1,26-38; 2,9-15 e 24,4-7). O acontecimento teológico da res­surreição de Jesus projetou luz sobre a sua vida terrena, também sobre a conceção e o nascimento.

As narrativas desses dois acon­tecimentos não são literatura de ficção. Mas eles não sucederam à letra nos pormenores, com a exa­tidão factual que uma visão histo­ricista gostaria de descobrir nelas: são fusão do factual com o ima­ginado. Jesus, Maria, José, João, Isabel, Zacarias, os pastores… são personagens históricas: a conce­ção e o nascimento de Jesus acon­teceram mesmo. Belém, Jerusalém são lugares conhecidos.

Aquilo que é literariamente tecido com as imagens que iluminam o factual é a trama pormenorizada do anúncio da conceção e do nas­cimento do menino, o magnificat que o celebra, a narrativa dos ma­gos que o vêm adorar como forma de reconhecer a sua divindade... As citações trazidas do Antigo Tes­tamento querem iluminar teologi­camente os mistérios relacionados com o nascimento de Jesus. Por meio do midráš narrativo, o seu nascimento objetivo evidenciava “a plenitude dos tempos” e realizava a esperança do povo ligado à revelação bíblica, dando-lhe voz e substância: aparecia como anel central da cadeia da história salví­fica, entre o Antigo Testamento e o Novo.

O midráš (a narrativa), com o ra­malhete de palavras das Escritu­ras, sugeria que Jesus tinha “cum­prido” à perfeição as profecias e promessas nelas contidas, isto é, o desígnio salvador de Deus para a humanidade. Os embelezamen­tos literários (anunciação do anjo, chacina dos inocentes, fuga para o Egito…) fecundavam de sentido transcendente os factos históricos mencionados. Eram espiritualida­de a meditar a história: sugeriam o invisível, que o historiador não poderia contar. O midráš narrativo convida o leitor a ver para além de si mesmo, a transferir-se para den­tro do mistério e a deixar-se orien­tar por ele a partir do Alto, enleva­do na contemplação pela virtude da palavra” .

Armindo dos Santos Vaz, in Secre­tariado Nacional de Liturgia).

Publicado em 2023-12-24

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