José Matos Correia

Perante um cenário de tamanha gravidade, a pergunta que, de imediato, se me coloca, é: como foi possível?

“As 512 vítimas diretas põem-nos no encalço de, pelo menos, outras 4300 e, se pensarmos que os abusos aconteciam, na esmagadora maioria dos casos, muito mais do que uma vez sobre a mesma criança, levam-nos a muitos milhares de abusos praticados”.

A frase é retirada do Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa. E a realidade que revela é estarrecedora. E, se o é para qualquer pessoa, é-o, ainda mais, para quem, como eu, é convictamente católico.

Perante um cenário de tamanha gravidade, a pergunta que, de imediato, se me coloca, é: como foi possível?

Como foi isto possível numa organização cuja razão de ser é viver de acordo com os ensinamentos de Jesus Cristo e propagá-los: “Ide pelo mundo inteiro, proclamai o Evangelho a toda a criatura” (Marcos 16:15)?

Como foi isto possível numa organização que deve ter no mandamento “amem-se uns aos outros como eu vos amei” (João 15:12), um dos referenciais centrais do seu ministério?

Como foi isto possível numa organização que, à imagem daquilo que Cristo fez, tem de se identificar, antes e acima de tudo, com os pobres, os desvalidos, os marginalizados:” Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram” (Mateus 25:35-37).

Como foi isto possível numa organização que deve ter sempre presente a lição: “Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas” (Marcos 19:14)?

É certo que nenhuma organização, nem mesmo aquelas que são regidas pelos princípios mais altruístas, está imune à presença, no seu seio, daqueles que disso são indignos. Mas, precisamente por essa natureza, tem de ser absolutamente implacável com práticas que representam desvios intoleráveis a tais princípios. E, infelizmente, não foi isso que sucedeu com a Igreja. Nem em Portugal, nem em muitos outros países. E, de novo, me surge a perplexizante interrogação: como foi possível?

Como foi possível a opção consciente pela política do silêncio? Como foi possível a tolerância perante o crime – no plano civil – e o pecado – no plano religioso? Como foi possível o encobrimento de quem o não merecia? Como foi possível a insensibilidade perante aqueles que sofreram e, em muitos casos, continuam e continuarão a sofrer? Como foi possível – e, pelos vistos, ainda é -, que infratores permaneçam integrados no seu seio?

Num mundo em que, infelizmente, os princípios são, progressivamente, substituídos pelos interesses e os valores arredados em nome das conveniências, os exemplos de retidão são, cada vez mais, essenciais.

Nesse contexto, o papel da Igreja Católica é – tem de ser – determinante na luta contra essas derivas. E, quando ela é mais necessária, vê-se abalada por um escândalo que, objetivamente, a questiona e diminui, tanto perante crentes, como não crentes.

As revelações agora tornadas públicas têm, ainda, um risco adicional: o de uma generalização injusta, tomando a nuvem por Juno. Porque em causa está o comportamento de uma (imensa) minoria de perpetradores e de quem, erradamente, os protegeu. E a Igreja é uma vasta comunidade de crentes, de religiosos e de sacerdotes que, no dia a dia, fazem o seu melhor para viver em obediência plena á sua fé e em agir, face aos outros, em consonância com ela.

No meio da tempestade há, contudo, fundados sinais de esperança. Que vêm, desde logo, do Papa Francisco e da sua inquebrantável determinação em reformar o que tem de ser reformado e, no que diz especificamente respeito à questão do abuso sexual, em ser absolutamente intransigente na sua denúncia e na sua condenação. Sinais que, em Portugal, são igualmente visíveis.

Desde logo, na própria decisão de constituir a Comissão Independente, a qual, de resto, no início do relatório fez questão de agradecer a disponibilidade da Igreja para satisfazer todas as necessidades requeridas pelo seu trabalho e o respeito absoluto pelo seu dever de isenção e independência.

Depois, nas declarações feitas pelo Presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, que não poderia ter sido mais claro quando disse – e cito – “A tolerância zero para com os casos de abusos tem de ser uma realidade em toda a Igreja” (…) Por isso, não toleraremos abusos nem abusadores".

O mal do passado não pode ser apagado. Mas, precisamente por isso, para além da sempre necessária renovação do perdão e da sincera disponibilidade para auxiliar os abusados na superação dos seus traumas, a Igreja tem de ser capaz de ir mais longe. E isso significa uma só coisa: que isto não pode, jamais, repetir-se. E, como católico, quero crer que é precisamente isso que sucederá.

A terminar, uma reflexão, esta de carácter mais geral, que resulta da leitura do relatório.

Sublinha-se, aí, que os abusos de crianças (menores de 18 anos) são mais comuns do que se pensa, pois que dados de uma metanálise destacam 18% de prevalência na população feminina e 8% na masculina.

Mal ou bem, tenho-me na conta de ser um cidadão interessado e atento ao que se passa à minha volta (a que não é alheio, evidentemente, o facto de ter estado na política ativa cerca de vinte anos). E confesso que fiquei bastante surpreendido com o nível desses indicadores. Ouso pensar, por isso, que outros terão ficado ainda mais surpreendidos do que eu.

Mas, se a realidade é esta, não será mais do que tempo de transformar o combate ao abuso num verdadeiro desígnio nacional?

In Expresso - José Matos Correia, 15.02.2023

Publicado em 2023-02-15

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