Só um louco é que tem filhos

Pedro Gomes Sanches

Não me interpretem mal: os filhos são uma dádiva maior, e dou a minha vida por cada um dos meus, mas arrisco dizer que também nos dão os anos mais difíceis da nossa vida

Ah, o Inverno demográfico, e o futuro do país, e a sustentabilidade das pensões… Esqueçam lá isso. Abaixo dos 19 anos devemos ter cerca de dois milhões de pessoas, são os nossos filhos mais queridos; já animais domésticos, os agora também designados "filhos" pelas novas tribos urbanas, rondam os seis milhões e tal, dos quais cerca de 4 milhões devem ser cães e gatos. Quem não percebe o surgimento e crescimento do PAN e o ocaso das políticas de defesa das famílias, pode começar por aqui.

Escrevo estas linhas às 3 da manhã, no word do telemóvel. Ao meu colo dorme, serenamente agora, a mais pequenina estrela da família: um anjinho de 10 meses. Mas não se iludam: as minhas noites são a antítese do país. Enquanto que o país é um paraíso governado por diabos, as minhas noites são um inferno governado por um anjo.

Interrupções de sono, numa cadência aleatória, em intervalos que vão dos 10 minutos às, na melhor hipótese, 2 horas. Agora dorme, daqui a 10 minutos acorda, depois dorme, depois acorda. 10 minutos. 30 minutos. 40 minutos. 15 minutos agora. 1 hora e meia depois. Quem é que aguenta? No final do dia, à hora de deitar, ao cansaço junta-se a ansiedade do como é que vai ser hoje? E depois disso, o desespero do choro, dela, e do sono interrompido, nosso. Todas as noites. Todas. Todas as semanas. Todos os meses. Sem folga. Já não me lembro o que é uma noite completa de sono. Aliás, fica o aviso, a próxima criatura que me vier com a expressão "dormir como um bebé" vai ter problemas. Ou isso, ou vem cá para casa durante uma semana "dormir" no mesmo quarto que o anjinho.

Eu sei, eu sei, sou pai de quatro. Já ouvi isso tudo, obrigado. Quatro vezes. “Deixá-los chorar, que acabam por se calar”. “Criar rotinas e um ambiente de tranquilidade”. “Arranjar-lhe um objecto de transição”. Bla, bla, bla… E também compreendo a vossa apreensão: então nunca há noites boas? Há, claro: uma noite boa para cada duas más. O problema são as quatro noites péssimas para cada duas noites más. Eis o resumo da minha semana.

Todas as noites penso se as rodas dos enjeitados ainda funcionam. Sabem, aquelas onde as crianças eram colocadas, sem se ver o rosto de quem as deixava, para que fossem tratadas e educadas por freiras. Para deixar os meus filhos? Não, claro que não, não sejam loucos. Para me enfiar a mim lá dentro, na expectativa de que me atribuam uma vida normal: um dia de trabalho e uma noite de sono.

O Miguel Esteves Cardoso, para aí na década de 90 do século passado, sobre as tarefas domésticas, escreveu uma crónica memorável sobre os homens a meias e os meios homens. Os primeiros dividiam a meias as tarefas com a mulher; faziam tudo juntos, mas a meias. Os segundos dividiam as tarefas, e cada membro do casal, sozinho, fazia as suas. Arrisco um aditamento à tese: em matéria de parentalidade temos os homens um quarto (¼) e os homens e um quarto. Os primeiros cuidam de um quarto das tarefas; às mães, quase sempre, sobra sempre mais, lamento informar. Os segundos são os que fogem para um quarto. Com tampões nos ouvidos. E venda nos olhos. E porta fechada. Desculpem o entusiasmo: já vi fantasias eróticas menos empolgantes que este cenário.

Mas tranquilizem-se, fico-me, sobre isto, por aqui. O meu ponto, na verdade, não é mais um relato das doçuras e das agruras da paternidade. Nessa matéria têm a Carmen Garcia, no Público, e a Inês Teotónio Pereira, no Dinheiro Vivo, a elas sobra-lhes a ciência, a filosofia e a graça que me faltam a mim. Aliás, para ser justo, às mães sobra tudo o que falta aos pais. Não por acaso, acabo de ver na Pordata uma infografia bem interessante sobre nascimentos. A referência para os dados? A mãe, claro.

E o que é que nos dizem os dados? Que 69% (dados de 2018) das mães trabalham, em 1995 eram 59%. 56% das crianças que nascem são de pais não casados, e 19% os pais não vivem juntos; em 1960 apenas 9% eram filhos de pais não casados, e em 1990 15%. A idade média da mãe, no primeiro filho, é de 30,4 anos; em 1960 era 25 anos, em 1990 24,7 anos. Em 1960 cada mãe tinha, em média, 3,2 filhos, em 1990 1,6 filhos; hoje 1,4.

Ou seja, as mães são mães cada vez mais velhas, cada vez mais sozinhas, cada vez mais trabalhadoras, cada vez mais cansadas e têm cada vez menos filhos. Alguém se surpreende? E eis o meu ponto: esta coisa da parentalidade, nos primeiros tempos de vida de um bebé, é mais que um trabalho a tempo inteiro, é uma vocação, 24h/24h, 7 dias/7 dias, sem férias, nem feriados. Eu sei que sempre foi assim, mas as condições sociais em que os nascimentos hoje ocorrem são diferentes. Não estou a fazer juízos morais, sobre se hoje somos, como sociedade, mais ou menos resilientes, mais ou menos piegas. Estou, objectivamente, a dizer que para lá do que sempre foi, hoje os pais (mães e pais) estão cada vez mais velhos - no caso das mulheres contrariado até o relógio biológico -, mais cansados, mais pressionados profissional e socialmente, mais sozinhos e com menos apoio familiar. E isto, quando não diminui a disponibilidade para ter filhos, aumenta os riscos de cansaço extremo e de prejuízo de saúde mental. Donde, as políticas de apoio à família são essenciais num programa de governo.

Já aqui, noutra semana, falei na importância das creches, mas e as licenças de parentalidade que se esgotam - quando partilhadas - ao fim de seis meses? Lamento, é pouco. E se o país estiver a definhar demograficamente é trágico. Porque a partir dessa altura, se a criança não dorme, aos pais, depois do trabalho diário, ainda lhes sobra a vigília nocturna. Podem ter o primeiro filho, mas só a estultícia os leva ao segundo. Não me interpretem mal: os filhos são uma dádiva maior, e dou a minha vida por cada um dos meus, mas arrisco dizer que também nos dão os anos mais difíceis da nossa vida.

Há outra hipótese. Para a estultícia de ir ao segundo, digo. A oração de Santo Inácio diz: tomai, Senhor, toda a minha liberdade, a minha memória e o meu entendimento. Só mesmo o milagre de perdermos a memória destes tempos sacrificiais, nos permite continuar em frente, olhando para os diabretes como anjinhos celestiais. Não falo de sacrifícios do tipo quaresmal, ao jeito de renúncia de cafés e tabaco, falo de câmaras de tortura de privação de sono.

Agora, ide passear o cão e votos de boa noite. Para todos. Para mim também, se Deus quiser e o anjinho deixar.

In EXPRESSO 09.08.2021

Publicado em 2021-08-12

Notícias relacionadas

Pe. João António Pinheiro Teixeira

A felicidade aumenta a produtividade

Pelo sinal da santa cruz - Tanto faz não é resposta

Carmen Garcia

As JMJ e o Estado Laico

“As ruas e as praças de Lisboa não pertencem apenas aos sindicatos e não são propriedade da extrema-esquerda. Até os Católicos se podem manifestar, porque há separação entre a Igreja e o Estado.”

O ESPETÁCULO DO MUNDO

Cristina Robalo Cordeiro

A batalha do absurdo

Maria Susana Mexia

A IGREJA CATÓLICA EM PORTUGAL

Alberto João Jardim

desenvolvido por aznegocios.pt